sexta-feira, 8 de maio de 2009

Falar "nóis fomo" é certo também: linguistas estudam o que todo mundo sabe

"A tragédia é a seguinte: todo mundo sabe que o ensino da língua portuguesa faliu nos últimos anos. Os resultados dos exames vestibulares são assustadores. Dentro da sala de aula, o panorama é absolutamente chocante: vinte anos de provas de múltipla escolha, mais falta de condições estruturais para lidar com a massificação da demanda à escola, mais péssima remuneração do magistério, mais absoluta falta de treinamento e atualização, mais crise teórica... e deu no que deu: hordas de analfabetos funcionais, muitos diplomados — nem por isso menos analfabetos."(SALOMÃO, M.. E onde é que a gente põe a gramática? Comunicação apresentada ao encontro “Problemas do ensino de português na região de Juiz de Fora”, realizado na UFJF, em 1989)

Embora proferido há vinte anos, o discurso da professora Margarida Salomão ainda pode ser aplicado aos dias de hoje. Diante da longa e atual fase de transição em que vivemos quanto ao ensino-aprendizado de língua materna, o novo milênio tem reservado um desafio especial para graduandos em Letras, professores de Língua Portuguesa e também para os demais docentes de outros saberes científicos: a preocupação com a linguagem, mediadora da relação aluno-professor em qualquer aula, seja de História, Geografia, Matemática ou Física. Todos dependem dela para que se dê a comunicação e a interação. Estamos entre o tradicionalismo daqueles que ainda norteiam suas aulas insistindo em privilegiar a Gramática Normativa e as novas propostas ancoradas nos modernos estudos lingüísticos, um fogo cruzado em que o único perdedor ainda é o aluno.

Tal impasse parece-nos, a princípio, estar fundamentado na resistência por parte do corpo docente de todos os níveis de ensino em ignorar as atuais investigações dos estudiosos em Ciências da Linguagem, que vêm fornecendo instrumentos efetivos para desenvolver nos alunos a habilidade de interpretar e redigir um texto. Isso é que os torna comunicativamente competentes e não o estudo puro e simples de metalinguagem, amplamente difundido pelo ensino da Gramática Normativa, que satura o aluno, condenado a decorar regras e exceções durante sua carreira escolar. E pior: ele chega ao vestibular sem saber Gramática Tradicional e sem saber ler e escrever bem.

Não há mais o que lamentar. A reação urge. O resgate da auto-estima dos professores deve passar pela atualização dos conteúdos e pela mudança de postura pedagógica. Sabemos que fórmulas pré-fabricadas, como a receita solada da Gramática Normativa, não são suficientes para dar conta das especificidades de cada sala de aula, principalmente quando se encara a língua com dinamicidade. O mais importante é o professor se munir dessas novas ferramentas teóricas para, aos poucos, ir adequando-as à sua realidade, desenvolvendo práticas próprias.

Não se trata aqui apenas de fazer um permuta simples e estúpida da tradição normativista pela Lingüística. Aos poucos, aqueles que ainda não conhecem as Ciências da Linguagem poderão perceber que as novas propostas vieram para realinhar os problemas, os quais fazem, por exemplo, com que professores dêem respostas evasivas como: “Isso é regra. Está na gramática e pronto”. Esse tipo de resposta deve incomodar até o próprio professor. Regras e regularidades devem ser aprendidas, ou melhor, inferidas, para fundamentar análises críticas. Sua repetição acrítica faz do aluno um sujeito passivo, acomodado em decorar matéria para as provas.

Embargo da mídia - É difícil encontrar um veículo de comunicação que abra espaço para reflexões como esta. Afinal, a tradição da Gramática Normativa também faz parte da formação da maioria dos jornalistas e editores. Além disso, são poucos os lingüistas que tentam suplantar esse embargo. O lingüista Marcos Bagno é um deles. Estudioso do preconceito lingüístico, Bagno, em um congresso na UFJF, disse que preconceito lingüístico é antes de tudo um preconceito social. Se uma pessoa fala, por exemplo, "parabéns, muita saúde, para que a gente estejamos sempre junto", logo outra torce o nariz. Torce o nariz não exatamente para o uso lingüístico em si, mas, de modo subjacente, para as origens sociais de quem lançou mão desse uso. E esse uso é cientificamente justificável, já que a língua se transforma ao longo do tempo. A língua muda. Para os lingüistas, isso é óbvio, mas não para aqueles que nunca ouviram falar em Lingüística.

Por outro lado, é muito difícil utilizar este espaço para veicular as divergências entre lingüistas e gramáticos normativos. Corre-se o risco de reduzir demasiadamente os conhecimentos sedimentados pelos estudos em linguagem ao longo de anos de pesquisa. No entanto, diante da grande quantidade de articulistas que prega certo purismo “gramatiqueiro” nos jornais, é preciso que haja uma reação. Uma reação que esclareça, pelo menos parcialmente, os pressupostos básicos e atuais no trato do fenômeno da linguagem é interessante para desencastelar certos conhecimentos que são velhos conhecidos dos lingüistas.

Variação em vez de erro - Um deles é que para o lingüista não existe certo e errado em termos de linguagem. A oração "nóis vai na casa do Jão cumer pexe", se proferida, é uma expressão bem formada para falantes de Português brasileiro. Não é errada, mas diferente. Trata-se apenas de uma variação que convive com "Nós vamos à casa do João comer peixe". Para os lingüistas, em geral, não há tanto problema em falar "pobrema", a não ser que, talvez, esse uso represente problema para alguém em determinado contexto. Por isso, é importante o professor discutir com o alunos os usos diferentes, ocorridos em contextos variados, para que o falante tenha condições de se adequar às situações de comunicação e, assim, não sofrer qualquer tipo de rejeição ou discriminação.

Trata-se de um problema de quem rejeita ou de quem é rejeitado? No lado de quem rejeita, sinaliza-se desrespeito com quem verbalizou o "erro", pois desprezam-se suas origens sociais e geográficas. No lado de quem é rejeitado, fala-se de uma inabilidade em se ajustar ao padrão, ocorrendo ainda uma auto-rejeição. Mas que padrão é esse? O do Jornal Nacional? O da "Gramática"? Tudo bem, vamos considerar ambos, que são vinculados sobremaneira à escrita, mas não estritamente à fala — neste âmbito é importantíssimo separar língua escrita de língua falada. Então, qual é o padrão da fala corrente? Não há um padrão entre os falares, mas vários. Por que não admitir os diversos padrões? Eles podem interagir entre si e não se excluírem. O que geralmente se exclui não é a forma de expressão, mas o que ela sinaliza, ou seja, novamente as origens sociais de quem a utiliza.

Contudo, ainda impera a exclusão pela linguagem. E isso reflete em sala de aula quando alguns professores dizem: "É errado falar 'pra mim fazer'. O correto é 'para eu fazer'. O uso de "mim" com sujeito de infinitivo já é largamente difundido entre nós na fala. Classificar como incorreto, geralmente, é uma imposição banal sem sustentação teórica. Uma escola que reitera preconceitos é inadmissível, mas a maioria dos professores não sabe que está sendo preconceituosa. Entretanto, não se dá o trabalho de perguntar por que os usos “errados” ocorrem. Por isso, antes de ser professor, o profissional deve ser um leitor, aberto às novidades anunciadas pelos pesquisadores. Se o professor se embrenhar nos rumos da pesquisa, melhor ainda, pois perceberá isso na prática.

Internet e escrita escolar - A mestre em Letras pela UNINCOR (Três Corações - MG), Regina Lúcia de Araújo, defendeu uma dissertação sobre "O chat e a produção da escrita escolar". Um dos aspectos discutidos é a preocupação dos professores com a influência “nociva” da linguagem da internet na escrita escolar. O receio é que expressões como "vc" (você), "blz" (beleza), "kd" (cadê) e "aki" (aqui) degenerem a escrita dos alunos. Para verificar se isso ocorria, Regina pediu que alunos escrevessem bilhetes espontaneamente para amigos e parentes, numa interação de sala de aula. Nesses bilhetes, os alunos abusaram de expressões usadas em salas de bate-papo virtuais. Num segundo momento, a professora solicitou aos mesmos alunos que rescrevessem tais bilhetes, só que dessa vez valendo nota. Aí os alunos reduziram sensivelmente o uso das expressões virtuais. Isso prova que eles sabem se adequar às diferentes situações comunicativas: uma coisa é escrever espontaneamente; outra é se adequar a uma situação formal de comunicação, como a prova. Se o aluno sabe se adequar, só subvertendo as situações quando quer, é sinal de que não há necessidade tratar a internet como o monstro da vez.

O fato é que sabemos usar a linguagem muito mais do que achamos que sabemos. Dependendo do contexto, falar "nóis fomo", por exemplo, pode ser um recurso de persuasão poderoso. Durante um show de música sertaneja de raiz, por exemplo, o violeiro tem mais chances de estabelecer empatia com a platéia se for fiel às suas origens lingüísticas do que aquele que preferir (se isso for possível) adotar o Português de Machado de Assis. O sertanejo está errado por isso? Não. Está sendo adequado. Então, já podemos, quem sabe, trocar as expressões "certo" e "errado" por "adequado" e "inadequado", como preferem os linguistas.

Eu e Adriana

Um comentário:

  1. Legais suas reflexões! Bem resumem o amplo debate em torno da qualidade do ensino de português nas escolas. Fui bolsista de iniciação científica júnior por dois anos, com um projeto intitulado: "O Ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio: estratégias metodológicas de integração do texto com a metalinguagem". Qualquer horas dessas... Grande abraço!

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