sexta-feira, 24 de abril de 2009

“ESTUDAR LINGUÍSTICA PARA QUÊ? VOCÊ JÁ É LINGUISTA”: RUMOS SEM FRONTEIRA NA IDADE DA IMAGINAÇÃO

Durante uma reunião de família, uma velha tia me disse o seguinte, na época em que eu cursava os períodos iniciais da Faculdade de Comunicação:

- Você tá estudando o quê?
- Comunicação, respondi.
- Mas você tá estudando comunicação pra quê? Você já comunica!

Entrei em estado de pausa por alguns segundos, pois como cantam os repentistas nordestinos, “não pergunte de repente que eu não escondo nada”. A princípio, eu não escondi. Ou escondi por que não sabia explicitar o que já sabia? Enfim, após algumas hesitações, falei que estava tentando me aperfeiçoar. Respondi apenas o que tinha condições de dizer naquele momento. E o que tenho condições de responder hoje é algo que já vem e continuará sendo construído ao longo de minha carreira acadêmica. Torço para que seja uma resposta à altura de quem prestigia e compõe esta mesa-redonda e para que seja uma resposta bem mais feliz que a resposta oferecida a quem já não pode mais me ouvir.

Essa resposta tem a ver diretamente com um dos rumos da Linguistíca neste século, que é a linha de pesquisa à qual tenho me dedicado: a Lingüística Cognitiva. A pergunta “estudar comunicação ou linguagem pra quê se a gente já comunica?” é uma das questões mais cruciais para as ciências da linguagem. E curiosamente é apresentada por alguém que jamais tinha ouvido falar em Linguística e Teoria da Comunicação, por alguém de baixa escolaridade, por um falante especial, visto que é comum. Na verdade, eu poderia ter usado com minha tia as palavras do pai do gerativismo, Noam Chomsky: “Quando falamos uma língua sabemos muito mais do que aquilo que aprendemos”. Porém, na época, não o conhecia. E hoje que o conheço opto por encaminhar a discussão em termos de uma linguística que é dissidente da Linguística Gerativa.

Nessa breve introdução, temos até o momento três personagens com suas respectivas questões:

(i) minha tia com uma provocação assentada no óbvio, o que de forma alguma significa banalidade. Mal sabia ela que aquilo que é óbvio não é fácil de ser explicado;
(ii) eu com uma questão por responder, e, com certeza, isso persiste até o momento;
(iii) e Chomsky, que encara a complexidade da pergunta de forma tão sofisticada que revoluciona a Linguistíca a partir da segunda metade do século XX.


Segundo ele, sabemos mais e não sabemos que sabemos mais. A princípio, isso me deixaria muito satisfeito, pois, de certa forma, isso significa a valorização de minhas competências virtuais. Que venha o mundo real, então! Vamos abrir metaforicamente as portas da Faculdade da Linguagem, selecionar alunos e professores, promover uma aula inaugural... Enfim, dar vida à faculdade, fazendo-a operar em grau máximo, sendo obrigado a submetê-la ao outro para adquirir linguagem. Tenho que fazer “as lesmolisas touvas (que) roldavam e relviam nos gramilvos” (Jaguadarte, de Lewis Carrol1) ganharem vida além da sintaxe, embora sem ela não consiga dar um passo em direção ao que me interessa: a construção do sentido. Mas ainda não estou pronto para desempenhar a competência com a qual nasci. É preciso dizer que esse passo também não é dado sem outros níveis microlinguísticos, como fonética, fonologia, léxico, morfologia, semântica e pragmática. É que a sintaxe, às vezes, mora com as “lesmolisas”. Seu habitat natural é riquíssimo, mas imagine “lesmolisas” e sintaxe envolvidas pela diversidade microlinguística. Estaríamos e estamos diante do maior tesouro tecnológico produzido pela humanidade: a gramática. Atrelada a processos cognitivos e interacionais fundados a partir da experiência, torna-se um condão universal, adquirido e desenvolvido por cada falante. Existe “magia” nesse processo, porque somos dotados de capacidades imaginativas, fictivas, projetivas e de abstração. Se não existissem, como eu poderia dizer (?):

a) “Nossa, você apareceu do nada heim!”. Em termos de condição de verdade, ninguém aparece do nada. Se eu não acompanhei o percurso de alguém ou de algo até mim, por que tenho autorização para dizer isso? Claro, meu corpo não tem o poder da ubiquidade. Por isso, eu imagino, eu fantasio, inclusive quando eu digo que “eu estou pagando de conferencista” ou quando eu formulo uma hipótese linguística sem precedentes. Se eu sei e não sei, eu tenho o poder de imaginar.

b) “A baleia é o maior mamífero do mundo”. Nesse caso, não me refiro à baleia que estrelou o filme Free Willy, chamada Keiko e que morreu aos 27 anos provavelmente por causa de uma pneumonia. Refiro-me a uma entidade abstrata, cognitivamente desengajada do mundo real.

c) “Há muitos estudantes mineiros de Letras neste lugar”. Por mais “verdade” que isso pareça e é verdade, pois cognitivista não é misticista, necessito acionar uma estrutura de conhecimento chamada frame para compor a significação desse enunciado. Nesse caso, aciona-se um frame de existência, o mesmo que é acionado quando dissemos “Assombração, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, unicórnio, Elvis Presley e Deus existem”. Então, o que é “verdade” e o que não é ficam a mercê da mesma capacidade imaginativa.

Em suma, a forma linguística não é forma linguística sem o significado cognitivo-interacional. O significante não é significativo sem o significado. Como a via do signo lingüístico é de mão dupla, o significado não é significativo sem a forma; o significado sem significante não emerge. Nesse sentido, Saussure estava certo: significado e significante são indissociáveis, como o lado A e o lado B de um vinil. Ora, mas eu posso querer ouvir só o lado B. Sim, é possível. A Lingüística Cognitiva diz que posso focalizar partes do signo, uma forma psicológica de recuperar a máxima saussureana de que o ponto de vista cria o objeto. Se assim o é, podemos ter linguistas de toda sorte: semanticistas, sintaticistas, pragmatistas, foneticistas, fonólogos e morfólogos. Podemos ainda ter ainda diferentes olhares sobre as disciplinas que eles estudam: sociolinguística variacionista, sociolinguística interacional, análise do discurso de base francesa, gerativismo, linguística textual, linguística cognitiva, psicolinguística, análise da conversa, linguística histórica, neurolinguística, entre outros. Então, já temos “cardiologistas”, “oftalmologistas”, “endocrinologistas”, “gastroenterologistas”, entre outros, da linguística. Em nome de quem eles trabalham? Qual é o ponto de convergência? O nosso é a linguagem.

Não obstante as amarras político-acadêmicas que insistem em delimitar as fronteiras entre campos do saber, o começo do século XXI endossa o que já vinha sendo tecido no final do século passado em termos de rumos para a ciência conhecida como Linguistíca. O inequívoco percurso em direção à interface, tanto no nível macro como microlinguístico, é uma realidade que tende a se fortalecer nos próximos anos devido à implosão das disciplinas. Este fenômeno se deve a modelos teóricos tradicionais que elegiam ou elegem apenas um carro-chefe microlinguístico e, diante da exaustão de estudos concentrados em uma perspectiva, inauguram-se tentativas de querer dar conta de “carros-sub-chefes” até então desfocalizados. Hoje em dia, por exemplo, não se admite mais estudar semântica sem pragmática. Igualmente relevantes, os demais níveis também estão sendo todos interfaceados. Já se fala morfopragmática e “fonossintaxe”, sem contar a tradicional morfossintaxe. Isso também repercute lentamente no nível macrolinguístico, pois já existem sociolinguistas que trabalham com analistas da conversa; cognitivistas com psicolinguistas; linguistas computacionais com linguistas de corpus; funcionalistas com sociocognitivistas etc.

O movimento tem um só destino: o entendimento de que, no ato da produção do sentido, convergem simultaneamente para a mesma arena linguística todos os conhecimentos do falante. A linguagem agrega o que ainda insistem em separar. A linguística que ainda rejeita a interface será traída pela força da própria linguagem, que, por natureza, é a tecnologia da convergência. A imaginação projetiva para isso também tem bases empíricas na crescente diversidade e quantidade de trabalhos publicados e apresentados em congressos de linguística do mundo inteiro. Graças às inevitáveis lacunas daquilo que já foi imaginado, teoricamente estabelecido ou pragmaticamente criado, as Faculdades de Letras não formam e não formarão apenas professores de língua e literatura maternas ou língua e literaturas estrangeiras. Formam e formarão analistas de linguagem, que podem atuar no mercado como consultores nas áreas de lexicografia, inteligência artificial, comunicação, artes, medicina, fonoaudiologia, administração, biologia, etc. Cabe a cada um de nós a definição de nossa própria interface, apostando que, para a especialização de meu perfil teórico, analítico ou profissional, tenho que buscar a síntese de múltiplos saberes.

Por exemplo, nas últimas décadas, a necessidade da interface conduziu a Teoria da Literatura e a Lingüística a ampliarem suas posições tradicionais e a experimentarem o envolvimento com a cultura, provocando a necessidade de uma reflexão comum a outros saberes. O final do século XX é o momento em que a Teoria da Literatura liberta-se de limites restritos, historicamente definidos, e reconhece uma prática artística mais rica, atingindo um número maior de pessoas. Do ponto de vista da Lingüística, o reconhecimento da relevância dos aspectos sociais e cognitivos alargou o escopo das bases teóricas em função da necessidade de se dar conta do fenômeno da produção do sentido em maior escala. Os modelos estruturalistas de análise lingüística, em geral, privilegiaram pouco a questão semântica, que hoje tende a estar em contigüidade com a pragmática.


Ampliando um pouco mais o escopo de reflexões, as ciências e as artes, unidas, emblematizam sobremaneira a ânsia humana em dar sentido para a vida. Razão e emoção, mescladas ou dicotomizadas, tecem a rede de perguntas que pode ser sumarizada em: o que é isso? Vivemos, de fato, na era das explicações. Não que o mundo não tenha tentado se explicar em outros momentos, mas o momento que nos circunda é pleno de acentuadas tentativas de dar conta de fenômenos de toda sorte. É o desespero de saber para sobreviver. No entanto, é preciso admitir que “A memória é uma ilha de edição”, já disse o poeta Waly Salomão. E por que não dizer: “A linguagem é uma ilha de edição”? Se editamos nossa visão sobre o mundo e sobre as pessoas com as quais lidamos, sinalizamos claramente nossa capacidade parcial de falar sobre a vida, o que é biologicamente irrefutável visto que o corpo limita. Isso fica claro quando pensamos nossa gramática internalizada como ilha de edição.

As limitações e potencialidades físico-biológicas do ser humano são por ele experenciadas e conceptualmente assimiladas ao longo de todo o processo ontogenético. Assim, durante a aquisição de linguagem, formatam-se cognitivamente restrições e/ou possibilidades gramaticais para que o sentido seja (des)construído. Em outros termos: a gramática internalizada restringe para possibilitar a significação ou possibilita para restringir a significação. Tanto no plano concreto como no abstrato, o ponto de vista emparelha limites físicos e epistêmicos, bem como possibilidades físicas e epistêmicas. Se a linguagem é conceptualmente motivada, a hipótese da corporificação certamente repercute no emparelhamento construcional entre léxico, gramática e frames.

O par indissociável restrição/possibilidade se desdobra no par forma/significado (construção gramatical), fortemente associado a um processo de base figurativa que se fundamenta nos limites corpóreos e perceptuais disparadores de uma das bases de abstração da realidade. Trata-se de um poder cognitivo que aciona, por meio de pistas simbólicas parciais, o todo de estruturas conceptuais idealizadas e armazenadas na memória (frames). Tal processo é conhecido como metonímia, projeção parte-todo ocorrida no interior de um mesmo domínio mental, observada, por exemplo, em construções como “The book is moving right along” (LAKOFF e JOHNSON, 1999, p. 203), cuja base figurativa produto-por-processo faz o livro substituir sua escrita. Operação cognitiva similar se verifica nos passes de mágica dos contos maravilhosos, em que o processo de confecção de objetos ou de chegada de entidades é desconhecido ou subfocalizado, fazendo com que a magia se realize pela percepção repentina de surgimento dos mesmos objetos e entidades. Ou seja: escamotear o processo é a magia da metonímia no campo das ações.

De fato, o linguista é um estudioso da mímesis, capacidade criativa de imitar. A linguagem, como já foi dito, é uma tecnologia, a qual permite “imitar” cenas e pensamentos. Se alguém ou algo “imita”, está sendo parcial, imcompleto. Em outros termos: o lingüista, ser parcial, estuda aquilo que é parcial para atingir o universal. Como ele tem autorização para agir dessa forma? Só mesmo com muita imaginação ele pode chegar lá por meio da formulação de hipóteses e teses. Mas antes de chegar lá, ele deve estudar o funcionamento dos percursos imaginativos. O que é a imaginação, para a Linguística? É uma boa pergunta para o século que se inicia. Segundo a Lingüística Cognitiva, somos capazes de preencher as lacunas da forma com a subjacência da cognição. Certamente, tal hipótese muito se alinha ao ilustre dito do filósofo e cientista polonês, Alfred Korzybski (1931/1996, p. 750): “O mapa não é o território”. Ou seja, objetivamente, as palavras não são as coisas que elas representam. Linguagem e mundo seriam coisas muito distintas. O fato de apresentarem similaridades não significaria igualdade. No entanto, na prática, eu imagino que sim.

Quando indagado pelo escritor britânico e instrutor de Programação Neurolingüística (PNL), Joseph O’Connor2, sobre a máxima korzybskiana, o neurobiólogo Humberto Maturana disse exatamente o contrário: “O mapa é o território”. Interpretada por O’Connor (1997, p. 2), a resposta obtida é coerente com o foco de Maturana na experiência subjetiva, a qual seria responsável por agregar mapa e território (representação e coisa representada, respectivamente), no sentido de que nossa experiência individual é real, é nosso território. De caráter flexível, as explicações científicas, estariam, então, diretamente associadas à coerência da experiência individual.

Talvez possamos conciliar o não de Korzybski e o sim de Maturana, atentando para a polissemia da palavra “mapa”. Como se sabe, uma expressão polissêmica apresenta mais de uma nuance significativa, sendo que tais nuances são conceitualmente relacionadas. Por exemplo:
-logicamente, o mapa gráfico da cidade de Viçosa (MG) não é o território onde se situa a cidade de Viçosa. Às vezes, tomamos um pelo outro por influência da cognição metonímica — ponto para Korzybski, porque, segundo ele, os seres humanos não experenciam o mundo diretamente, mas apenas por meio de “abstrações”; ponto também para Maturana, que, no livro de 2001 (Cognição, ciência e vida cotidiana), também mostra a distância entre objeto e percepção do objeto;

- já o mapa cognitivo que disponho da cidade onde estou, de acordo com minha experiência subjetiva, é a cidade de Viçosa. Se desloco todos os dias por suas ruas e avenidas, conheço seu mapa, no mínimo parcialmente — ponto para Maturana, pois a experiência subjetiva é um domínio específico de verdade e não a verdade geral. Se entendermos “mapa cognitivo” como abstração intermediando linguagem e mundo, mesmo sem envolver a questão subjetiva, poderíamos dar ponto também para Korzybski.

Competição empatada, mas não fim de jogo. E o mapa lingüístico de um local fornecido a alguém que se encontra perdido pelas ruas de Viçosa? Quero dizer: e as construções léxico-gramaticais que uso para mapear direções a quem me pediu informação? Constituem mapas que são ou não territórios? A meu ver, são mapas linguísticos, com base em redes conceptuais. Para o linguista, o mapa lingüístico é o território de estudo. Nesse sentido, cada um de nós é um “lingüista” nato, pois desde criança testamos hipóteses lingüísticas e confirmamos teses para interagir com o outro e, no decorrer da vida, adquirir novos gêneros discursivos e textuais. A única e árdua tarefa do lingüista acadêmico é desvendar os mecanismos que sustentam o mapa lingüístico. O que se faz com um mapa lingüístico nas mãos?

Isso fica por conta de cada um de nós responder, construindo o próprio rumo, criando sua própria narrativa de vida. A interface, como já se mencionou, é uma possibilidade de resposta. A linguagem ensina: a interação fortalece as redes, sejam elas de amigos, de discentes e docentes pesquisadores. E é exatamente o que este evento propõe: consolidar a rede de estudantes de Letras de Minas Gerais. Eu não acredito em gênios isolados em “garrafas”! Para mim, gênios dessa estirpe são como unicórnios, mulas-sem-cabeça e coelhinhos da Páscoa. Na academia pelo menos, não há genialidade que se sustente sem o trabalho em equipe.

Neste momento, encerro a resposta à questão de minha tia. É o que tenho condições de responder por agora. Obrigado e parabéns a todos!


1 Verso de Jaguadarte, de Lewis Carol (1871), poema muitas vezes usado por sintaticistas para explicar que o texto, tanto no original quando na tradução, enaltece a morfossintaxe da língua, ao desfavorecer o aspecto lexical. Ou seja, a estrutura seria tão auto-suficiente que confere conteúdo semântico ao poema.

2 A pergunta foi feita em um seminário promovido pela Open University (Inglaterra, 1997). A sentença atribuída a Korzybski é “uma âncora útil para o modelo da PNL que (sic) nossa experiência individual do mundo é um mapa modelado por nossos sentidos, interesses, estados emocionais, metaprogramas, história pessoal e preocupações temporárias” (O’CONNOR, 1997, p. 2).

Um comentário:

  1. É curioso como as pessoas mais simples nos fazem perguntas tão complexas de serem respondidas.Sinto-me perdida a disciplina que curso na faculdade de letras, há sempre uma lacuna, um porém. Mas pelo menos existem professores que nos jogam mais e mais no meio do furacão fazendo-nos encontrar nossas próprias respostas, ou pelo menos hipóteses.

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